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A Degustação de US$ 1 Milhão

A Degustação de US$ 1 Milhão

05/01/2019

Marcelo Copello

Personalidade

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Por Marcelo Copello

Toda inovação traz em si uma porção de risco. A coragem é ingrediente cada vez mais raro nas áreas da criação humana. Do futebol ao cinema, passando pelo vinho, é sempre mais seguro ficar na defesa, repetir uma fórmula de sucesso, do que criar algo novo. O Grange, tinto da vinícola australiana Penfolds, é um grande exemplo de ousadia bem-sucedida no mundo de BACO. Criado em 1951 e hoje tido como um dos maiores vinhos do mundo, o Grange tem uma história singular (leia mais adiante).

Para celebrar este mítico caldo, a Penfolds (representada no Brasil pela Interfood – www.todovino.com.br) promove a cada cinco anos uma espetacular degustação, que é registrada em uma nova edição do livro The Rewards of Patience (As recompensas da paciência).

A sétima edição deste evento quinquenal aconteceu pela primeira vez fora da Austrália, nos dias 19 e 20 junho de 2012,  em Nova York, e tive a honra de ser o primeiro brasileiro a participar. A prova foi composta por nada menos que 58 safras do Grange – todas as 55 safras já lançadas (de 1952 a 2010). Este conjunto de garrafas, algumas raríssimas, que alcançam altas cifras em leilões, está avaliado em US$ 1 milhão, segundo a Penfolds. Antes de ler sobre a prova, vejam a entrevista que fiz com Peter Gago sobre a mesma:


 

Os felizardos participantes desta degustação histórica, além do abnegado monge de BACO que vos escreve, foram: Peter Gago (enólogo-chefe da Penfolds), Steve Lienert (enólogo sênior da Penfolds), Andrew Caillard (Master of Wine australiano e autor no livro The Rewards of Patience), Joe Czerwinski (editor da revista americana Wine Enthusiast), Dave McIntyre (editor do jornal Washington Post), Linda Murphy (colaboradora da revista inglesa Decanter e do site www.jancisrobinson.com), Josh Raynolds (editor do site Tanzer International Wine Cellar), Ray Isle (editor executivo da revista Food and Wine Magazine), Anthony Gismondi (o mais influente crítico de vinhos canadense).

História

Grange era o nome de uma casa de campo em Magill, próxima à cidade de Adelaide, na Austrália, onde viveu o doutor Christopher Rawson Penfold, que em 1844 fundou a Penfolds. Defensor das virtudes terapêuticas do vinho, o doutor trouxe cepas do Sul da França, notadamente a Syrah, que plantou na sua propriedade de Magill, onde fazia vinho para seus pacientes.

Um século depois sairia deste vinhedo boa parte das uvas que compõem o vinho Penfolds Grange Hermitage Claret Bin 95, hoje chamado apenas de Grange. A história deste vinho começa em 1950, quando o então enólogo-chefe da Penfolds, Max Schubert, visitou Bordeaux. De lá, ele voltou com a firme intenção de produzir na Austrália um tinto seco para ao menos 20 anos de guarda. Vale lembrar que naquela época a produção australiana era voltada para vinhos fortificados, no estilo dos vinhos do Porto e Madeira. Os poucos vinhos de mesa eram mais leves e de consumo imediato.

Schubert começou o trabalho por escolher a matéria-prima adequada. Quase não havia castas bordalesas na Austrália (Cabernet Sauvignon, Merlot, Cabernet Franc, Petit Verdot, Carménère e Malbec). Destas havia apenas um pouco de Cabernet Sauvinon e um quase nada de Malbec. Por outro lado, ele tinha a seu dispor bastante Syrah de ótima qualidade, principalmente de Magill. Ele optou, portanto, por usar como base a casta Syrah, com pequenas porcentagens de Cabernet Sauvignon.

A primeira safra experimental do novo vinho foi em 1951. Seu objetivo era fazer um vinho encorpado, com o máximo de concentração. Para tal, precisou obter uvas com ótima madurez, mantendo uma boa acidez (entre 6,5 e 7 gramas por litro de ácido tartárico). Desta safra experimental foi feita apenas uma pequena quantidade de vinho, cinco barricas, sendo quatro de carvalho novo, onde o vinho estagiou 18 meses, e uma barrica com madeira usada, para poder comparar os resultados. Animado com o resultado, Schubert continuou produzindo o vinho nas safras seguintes, até que o volume de garrafas acumuladas no armazém da empresa começou a chamar a atenção da diretoria da Penfolds, que o pressionou a comercializar o vinho.

Fizeram então uma prova vertical das safras de 1952 a 1956 para formadores de opinião em Sydney. O vinho era forte, ainda novo demais. Um estilo muito diferente do padrão da época e a degustação foi um desastre. Schubert, o Grange e a Penfolds foram ridicularizados. Havia cinco safras estocadas (o que era fora do comum na época) e encalhadas,  levando a direção da empresa a ordenar o fim da produção antes da safra de 1957. Porém Shubert continuou produzindo o Grange clandestinamente, em quantidades menores e sem barricas novas (devido ao alto custo).  Assim foi feito nas safras de 1957, 1958 e 1959. Com o passar dos anos, as safras de 1952 a 1956 melhoraram. Com o envelhecimento em garrafa, começaram a receber elogios. Em 1960, a direção da empresa resolveu “voltar” a produzir o Grange. Em 1962, pela primeira vez, o Grange participou de um concurso em Sydney, com um 1955, que ganhou ouro. O Grange 1955, hoje considerado um dos maiores vinhos australianos de todos os tempos, viria a ganhar mais de 50 ouros em concursos internacionais até 1977, quando decidiram preservar estoques e trabalhar novas safras. Schubert faleceu em 2004, com status de herói nacional australiano.

O Grange

O Grange é um vinho “multirregional”, já que as uvas em sua composição vêm de diferentes regiões – Barossa Valley, McLaren Vale e Magill Estate, em South Austrália. O corte varia ano a ano, mas a base é sempre a Syrah, normalmente com uma pequena porcentagem de Cabernet Sauvignon. O amadurecimento é feito em barricas 100% novas de carvalho americano. O Grange é um vinho monumental, feito para evoluir por décadas. Seu  estilo geral é sempre o mesmo – um vinho de impacto para todos os sentidos, cor muito escura, muito corpo, grande estrutura de taninos, ótima acidez, meio de boca largo, longo, complexo e profundo, preenchendo todos os espaços do paladar. Quanto custa um Grange? Depende muito da idade e da raridade. Um de safra recente gira em torno de R$ 2 mil. Nesta prova de Nova York estava presente um grande colecionador de Grange, o americano Robert DeBellevue, que provou esta maravilha pela primeira vez quando era estudante na Austrália, nos anos 1970. Na época ele pagou cerca de R$ 12 pela  garrafa de 1965. O Grange deverá estar disponível no Brasil pelas mãos da Interfood a partir de setembro.

A vertical – anos 1950

Os Grange da década de 1950 estão incrivelmente vivos. Os grandes destaques desta parte da prova foram as de 1952, 1953 e 1955. A primeira safra comercial do Grange, 1952 (um dos raros Grange feito com 100% Shiraz), impressionou bastante, muito expressivo, já evoluído, de cor alaranjada, com toque medicinal, notas de couro, ervas, coentro. Na boca é concentrado, largo e macio, rico e delicioso – foi o meu predileto dessa década, está em um ótimo momento, embora talvez deva viver tanto quanto a de 1953 e a de 1955. A de 1953 mostrou como cartão de visita muita madeira, com aromas de coco, tostados, baunilha, frutas secas, ervas, em uma estrutura compacta, com taninos e acidez vibrantes – deverá viver ainda muitos anos. O Grange mais premiado da história, o da safra de 1955, fez jus a sua fama. É extremamente bem proporcionado, elegante, complexo, com finesse e com estrutura e equilíbrio para viver ainda por muitos anos. O de 1954 foi prejudicado pela má sorte de duas garrafas ruins, enquanto o de 1956 estava muito bom, delicado e elegante, mas à sombra dos destaques. As garrafas de 1957, 1958 e 1959 estavam perfeitas e excelentes, mas visivelmente se ressentem da falta de madeira nova em sua elaboração.

A vertical – anos 1960

Os Grange da década de 1960 mostraram-se muito consistentes em sua qualidade e estilo. Ao menos oito safras estavam excepcionais: 1960, 61, 62, 63, 66, 67 e 68. Os primeiros anos da década, 1960-61 mostraram claramente uma inspiração em Bordeaux, bem proporcionados, com mais elegância que impacto. Notas minerais, toque salgado, taninos mais secos e finíssimos. O de 1962 e em especial o de 1963 (100% Shiraz) estavam mais exuberantes, macios e concentrados, com muitas notas de ervas e especiarias, ambos ainda muito vivos e com potencial de guarda. O de 1966 mostrou-se mais maduro, largo e macio, enquanto o de 1967 era mais seco e sério. Contido, mas profundo. Agregando notas de frescor floral com notas animais de defumados e bacon, o de 1968 estava complexo e muito rico no nariz e no paladar.

A vertical – anos 1970

A década de 1970 pode ser dividida em dois estilos. De 1970 a 1974, são vinhos mais clássicos, com inspiração em Bordeaux; e de 1975 a 1979 mais imponentes e concentrados. Como destaque, cito os de 1970, 71, 73, 76 e 77. O de 1970 estava muito expressivo, com notas de madeira doce, couro, musgo e canela, taninos finos e secos.  Parece estar em seu auge, há dúvida se evoluirá mais. O de 1971 foi um dos melhores de toda a prova. Com elegantes notas de tostados, harmônico e muito vivo, seco e sério, com apenas 12,5% de álcool, ainda deve viver muitos anos. Com um perfil mais feminino e muita finesse, o de 1973 encantou. Com notas florais, de ervas, especiarias doces, chocolate, paladar macio e longo. Os de 1976 e de 1977 dividiram um perfil semelhante, com destaque para o de 1976 (com 13,9% de álcool), exuberante e concentrado, com notas balsâmicas, ervas frescas, aneto, menta, pimentas e especiarias doces, com uma nota que lembrou a tonka (a baunilha brasileira).

A vertical – anos 1980

Nesta parte da prova, vi muitos vinhos hibernando, no meio do caminho entre a vivacidade da juventude e a plenitude da idade. Assim estavam os de 1982 a 1988, ou seja, recomendo consumir o Grange até os 20 e poucos anos de idade, ou com mais de 30. Também observei uma clara opção pela sobrematuridade na segunda metade desta década (seria um reflexo dos Bordeaux de 1982 e da chegada de Parker ao mercado?). Os destaques foram 1980, 81, 82, 83, 85 e 89. As duas primeiras safras da década chamaram a atenção por sua elegância, expressividade e equilíbrio, com perfis mais clássicos, secos e sérios. O de 1982, com um toque a mais de madeira e concentração, conduziu ao estilo poderoso do de 1983, talvez o melhor da década. O de 1985, concentrado, perfumado, entre flores e ervas e com taninos sérios, não ficou atrás. O de 1989 é um caso à parte.  É sobremaduro, com notas de cana-de-açúcar, cogumelos, com paladar largo e muito macio, encantada e conquista, mas fica uma dúvida sobre sua longevidade.

A vertical – anos 1990

A década de 1990 foi pródiga para o Grange. Com exceção do ano de 1995 (tivemos a infelicidade de duas más garrafas), um 1997 mais discreto e um 1999 um pouco sobremaduro (sem deixarem de ser excelentes), provamos sete safras inesquecíveis. Quase como uma resposta aos excessos do final dos anos 1980, os anos 1990 trouxeram vinhos sofisticados –com grande estrutura e concentração típicas do Grange, mas sem esquecer a elegância e o equilíbrio. Meus prediletos foram 1990, 91, 96, 98. Rico, complexo e elegante, o 1990 estava perfeito, ainda jovem, mas já muito expressivo, perfeitamente equilibrado, com sólida estrutura de taninos muito finos, um grande vinho. Delicioso, denso e elegante, o 1991 só tem um problema:  veio logo depois do de 1990. O 1996 e 1998 partilham de um mesmo estilo impactante, que eu chamaria de monumental, por sua sólida estrutura. Na prova comentei que estes dois grandes vinhos me pareciam dois skyscrapers (arranha-céus) de Nova York, sendo que o de 1998 é um andar mais alto em sua estatura.

A vertical – anos 2000

Como era de esperar, os vinhos desta década estão ainda muito novos,  alguns ainda fechados, todos com grande concentração, muita madeira nova e fruta primária, notas de frescor, como menta e eucalipto. Meus prediletos foram 2004, 2006, 2008 e 2010. O de 2004 foi o que mais encantou, com grande concentração de fruta madura, sólida estrutura de taninos finos e ainda muito presentes. O ano de 2006 é uma grande safra, mas é ainda um monstro pouco amigável e em processo de integração. Quanto aos de 2008 e 2010, como ainda não foram lançados no mercado, foi pedido aos jurados que não os comentem – só posso adiantar, então, que serão grandes Granges, muito refinados.

Koonunga Hill

A espetacular prova de Grange foi seguida de uma interessantíssima vertical de todas as safras já lançadas do Koonunga Hill Cabernet-Shiraz, de 1976 a 2010. Este, que é um dos vinhos básicos da empresa (e um grande custo-benefício), encantou – tem boa estrutura, estilo fácil e delicioso, preço acessível ( Interfood), e demonstrou grande potencial de guarda. As minhas safras prediletas foram: 1976, 77, 81, 86, 89, 91, 92, 93, 97, 99, 2000, 03, 04, 06, 08, 10. Destes, destaque especial para 1976, 91, 2004, 08 e 10.

Marcelo Copello

Marcelo Copello


Marcelo Copello é um dos principais formadores de opinião da indústria do vinho no Brasil, com expressiva carreira internacional. Eleito “O MAIS INFLUENTE JORNALISTA DE VINHOS DO BRASIL” pela revista Meininger´s Wine Business International, e “Personalidade do Vinho” 2011 e 2013 pelo site Enoeventos.

Curador do RIO WINE AND FOOD FESTIVAL, e Publisher do Anuário Vinhos do Brasil, colaborador de diversos veículos de imprensa, colunista da revista Veja Rio online. Professor da FGV, apresentador de rádio e TV, jurado em concursos internacionais de vinho, como o International Wine Challenge (Londres). Copello tem 6 livros publicados, em português, espanhol e inglês, vencedor do prêmio Gourmand World Cookbook Award 2009 em Paris e indicado ao prêmio Jabuti.

Especialista no mercado e nos negócios do vinhos, fazendo palestras no Brasil e no exterior, em eventos como a London Wine Fair (Londres). Copello é hoje um dos palestrantes mais requisitados. Para saber mais sobre as palestras e serviços de Copello clique AQUI

  

Contato: contato@marcelocopello.com