Por Marcelo Copello
De líquido marginal, a cachaça foi elevada ao posto de destilado nobre e representa 87% do mercado de destilados no Brasil. Até a década de 90, a purinha se situava entre a bebida dos humildes ou no máximo dos excêntricos. A "tira-juízo", "xarope-dos-bebos" ou "esquenta-dentro" quando chamava atenção era por seu exotismo e por seu lado folclórico. No final dos anos 90, a "brasileirinha" tomou ares de atitude vanguardista, de bebida verde-e-amarela, para adentrar o século XXI em seu merecido pódio, o de mais brasileira das bebidas, símbolo nacional, com qualidade, charme e sofisticação.
A "preciosa" freqüenta hoje a mesa de todas as classes, com espaço garantido nas delicatessens, nas gôndolas de supermercados, nas cartas dos melhores restaurantes, em hotéis de luxo, na mídia generalizada e especializada. A "danada" já motiva festivais, confrarias, associações de produtores e de apreciadores e até conquistou a atenção de órgãos governamentais. Terceiro destilado mais consumido do mundo, atrás apenas da vodca e do soju (bebida à base de sorgo muito consumida na Ásia), a "dengosa" é, antes de tudo, a segunda bebida alcoólica na preferência dos brasileiros. Perde a preferência apenas para a cerveja.
A origem da palavra "cachaça" é bastante controversa. Os primeiros registros históricos do termo "caxasa" como aguardente de cana, datam de 1635, nas atas da Câmara do Município de Salvador. Pode ter sido uma derivação do vocábulo "cacho", proveniente do latim "capùlus" (punhado) ou "caccùlus" (caldeirão). Outra teoria se origina na Portugal quinhentista, onde "cachaça" significava "vinho de borras", denominação que no Brasil, teria se estendido à aguardente feita de borras de melaço. Existem ainda outras hipóteses, como o feminino de "cachaço" (parte gorda do pescoço do porco), ou ainda o verbo latino "coquère" (cozer, cozinhar).
O crédito pela invenção da pinga é dos escravos africanos. Eram eles que cozinhavam o caldo de cana para obter o melaço, que teria acidentalmente fermentado durante esse processo e destilado ao ser fervido. A origem da "marvada" se situa entre os anos de 1532 e 1548, na capitania de São Vicente, primeira a ter plantações de cana-de-açúcar. As mudas da "cana crioula" teriam vindo da Ilha da Madeira por iniciativa de Martim Afonso de Souza, donatário dessa faixa de terra.
Foram também os portugueses que importaram a devoção a São Benedito, santo associado à cachaça, mesmo antes de sua canonização em 1807. Conhecido como "o santo mouro", ele nasceu em 1526 na Sicília (Itália), filho de um escravo africano. Seu culto tornou-se muito popular no Brasil, como padroeiro dos negros e da caninha.
Cada brasileiro consome anualmente 11,5 litros de aguardentes de cana e de cachaças. É bom avisar, o INMETRO faz distinção entre os dois produtos. A diferença está na origem da matéria-prima. Enquanto a aguardente de cana é "feita diretamente a partir do destilado da cana", a cachaça é "feita a partir do melaço resultante da produção de açúcar de cana".
A produção brasileira ronda os 1,4 bilhão de litros anuais e já movimenta R$ 7 bilhões, gerando 600 mil empregos diretos e indiretos. São cerca de 40 mil fabricantes, localizados principalmente nos estados de São Paulo (o maior produtor, com 70% do mercado), Pernambuco, Ceará, Rio de Janeiro, Goiás e Minas Gerais. São mais de cinco mil marcas lideradas pela “51”, da Companhia Müller de Bebidas. Esta empresa, com sede em Pirassununga-SP, que responde por mais de um terço de todo mercado, produzindo 250 milhões de litros/ano, com um faturamento de R$ 500 milhões.
Outros players importantes são a pernambucana Pitú, maior exportadora do País e localizada em Recife; a Velho Barreiro, fabricada em Rio Claro, no interior de São Paulo; e a Ypioca, do Ceará. Esta última é a líder quando se fala em fabricação com matéria-prima própria e envelhecimento em barril. Segundo o Guiness Book, a Ypioca detém o recorde de maior barril de madeira do mundo, com capacidade para 374 mil litros.
As exportações de nossa “água-de-briga”, ainda são uma gota se comparadas à outros destilados como o rum cubano, a vodca russa ou uísque escocês. O México, por exemplo, exporta cerca de US$ 250 milhões de tequila ao ano, enquanto as remessas de pinga para fora do país são
são tímidas, apenas 1% da produção. O maior mercado de exportação e a Alemanha, que em 2015 comprou cerca de US$ 2,5 milhões.
Algumas regiões produtoras já são ostensivamente reconhecidas pelo mercado interno como símbolos de qualidade. Uma das mais tradicionais é Paraty, balneário carioca sinônimo de caninha da boa. A Maré Alta é o nome mais importante da região e tem um estofo de aristocracia. Esse alambique pertence ao príncipe dom João de Orleans e Bragança, o que confere à bebida um merecido ar nobreza.
A região de maior prestígio, porém, é outra. Fica em Salinas, no vale do Jequitinhonha, localizada 680 km ao norte de Belo Horizonte. Considerada a capital nacional da cachaça artesanal (vide box sobre cachaça artesanal), concentra 23 fabricantes legais, que têm cerca de 35 marcas, sem contar as mais de cem marcas não registradas.
É de lá que vem o maior mito entre as caninhas, a Anísio Santiago. Falecido há alguns anos, com idade avançada, Santiago produzia, desde os anos 1940, uma pinga que levava o nome de sua fazenda, "Havana". São muitas as histórias a respeito dessa cachaça, a mais cara do País (cerca de R$ 300 a garrafa, em São Paulo), e de seu fundador. Processado nos anos 90 pelo Havana Club Holding S/A, Santiago perdeu o direito à sua marca. Após o litígio, os rótulos passaram a ostentar o nome do criador, "Anísio Santiago".
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